Créditos: Leonardo Morais
Banhado pelo rio Solimões e no coração da floresta amazônica está o
município de Coari. A pouco mais de 300 quilômetros de Manaus, na
cidadezinha do interior do Amazonas, vivia Iara [nome fictício], menina
de 13 anos de idade e gostos comuns. A partir de um convite, ela entrou
em uma rede de exploração sexual. Aos 16 ela foi encontrada morta por
overdose de cocaína em um quarto de motel na capital amazonense. O caso
levantou suspeitas porque Iara “mal bebia cerveja”, segundo relatos de
familiares, vizinhos e amigos.
Assim como ela, outras garotas de Coari tiveram um final parecido ou
estão sendo ameaçadas e sob a proteção para vítimas e testemunhas do
Estado. No caso de Iara, três dias antes de morrer ela havia denunciado
uma rede de exploração sexual, que envolveria o prefeito do município,
Adail Pinheiro.
Provisoriamente preso há quase um mês, o prefeito, membro do Partido
Republicano Progressista (PRP), está em seu terceiro mandato e é réu em
pelo menos 70 processos que tramitam na Justiça do Amazonas. Entre as
denúncias, estão corrupção, pedofilia e exploração sexual de crianças e
adolescentes. Além dele, outros cinco suspeitos também foram detidos,
todos de cargos públicos da região.
“Há um indício muito forte de que a rede que serve o prefeito é
estimulada ou alimentada por recursos públicos”, afirma a presidente da
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) de Exploração Sexual de Crianças
e Adolescentes, Erika Kokay. Para a deputada federal é necessário uma
ação mais ampla. “Só o afastamento do prefeito é insuficiente,
precisamos de intervenção no município. [A rede] É um corpo muito grande
que funciona sem a cabeça.”
Segundo a defesa de Adail Pinheiro, o ex-prefeito é inocente de todas as acusações. Em entrevista à
Rádio Amazonas FM,
o advogado de Pinheiro, Alberto Simonetti, afirmou que as acusações
divulgadas pela mídia são “fantasia” e que há uma disputa política por
trás. “O município de Coaria é estratégico no estado e ninguém pode se
iludir que não há segundas intenções em tudo o que está se fazendo.”
“Parados no tempo”
Renato Souto, do MNDH, aponta a dificuldade em desmantelar a rede e
acredita somente na intervenção de órgãos internacionais, como a
Organização das Nações Unidas. “Estamos há muito tempo lutando para que
isso seja apurado. O prefeito nunca foi julgado e não houve justiça.
Aqui no Amazonas a lei não funciona, o que reina chama-se corrupção,
suborno e outras práticas criminosas sustentadas com dinheiro público.” O
Conselho Nacional de Justiça e a Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República solicitaram que o caso seja tratado pela
Justiça Federal.
Mais esperançosa, a presidente da CPI, Erika Kokay, está solicitando
uma intervenção estadual para limpar a máquina pública. “Precisamos
assegurar um posicionamento mais célere da própria Justiça. É
difícil
que aja esse nível robusto de violação e exploração sexual sem a
conivência ou nível de participação – mesmo que pelo silêncio – de
outros segmentos do Estado.”
Como forma de prevenir novos casos, a cidade foi inclusa no Programa de
Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual de
Crianças e Adolescentes (Pair), do governo federal. A iniciativa traz
ações voltadas para prevenção e enfrentamento de violência sexual contra
crianças e adolescentes.
Para os especialistas, as redes de exploração sexual só podem ser
desarticuladas se a lei for cumprida. “As políticas públicas já existem,
mas não são executadas em nenhum nível, seja municipal, estadual ou
federal. Mas também, quando há formação e capacitação técnica, falta
infraestrutura”, afirma Marlene. Benedito dos Santos ressalta a
importância da isenção dos órgãos locais é fundamental entretanto,
“quando há comprometimento dos órgãos de segurança e autoridades,
pode-se acionar a Polícia Federal”.
“Enquanto os políticos não tomarem as decisões necessárias para exercer
a lei e avançar no discurso e nas ações, os exploradores estão muito
mais atualizados, desenvolvidos e espertos, enquanto nós estamos parados
no tempo”, aponta a socióloga, que inclusive está jurada de morte em
uma capital brasileira. “Eu, uma única pesquisadora, cheguei e consegui
descobrir uma rede de cafetões nesta cidade e a polícia não?”
Infância à venda
Poder, fetiche, impunidade, vulnerabilidade socioeconômica das vítimas
ou pura oportunidade de comércio. Para especialistas, esses são os
principais fatores que favorecem o surgimento da rede de exploração
sexual. “Alguns exploradores têm dinheiro e outros não, mas sempre há
alguma forma de poder”, afirma a socióloga Marlene Vaz, que pesquisa o
tema desde a década de 1970.
Segundo o professor e pesquisador da Universidade Católica de Brasília,
Benedito dos Santos, também consultor do Unicef, as redes se iniciam
com a ação de um aliciador local em busca de lucro. “As pessoas se
juntam, principalmente, por uma oportunidade financeira. O aliciador
cria conexão com taxistas e redes hoteleiras, por exemplo.”
A indústria de entretenimento também pode fomentar a exploração sexual
de crianças e adolescentes. São bares, restaurantes e boates que aliciam
meninas com menos de 18 anos para programas. Além disso, há ainda o
turismo. Na região do Amazonas, por exemplo, o turismo de pesca é muito
forte e há relatos de programas com meninas que chegam a custar R$ 10
mil para estrangeiros. “Existe muito arraigado o turismo interno de
negócios, da pescaria, das convenções, por exemplo, que se beneficia e
incentiva a exploração sexual. Isso acontece bastante na região central
do Brasil”, explica o consultor do Unicef.
Durante pesquisas sobre o tema, a socióloga relata ter percebido que o
peso do poder político nas redes de exploração sexual. “Há muita
facilidade e poder nas mãos desses grupos que se envolvem com
exploração. Encontrei muitos anúncios em jornais, em Brasília,
oferecendo acompanhantes, mas que na verdade estão oferecendo exploração
sexual de adolescentes para políticos”, afirma. “Há ainda casos de
desfiles de meninas em Porto Velho (RO), promovido por um vereador, para
deputados e magistrados escolherem qual delas eles irão explorar.”
A relação de poder também pode ser oriundo da influência do explorador
sobre a vítima, não envolvendo poder econômico ou político. É o caso,
explica a pesquisadora, quando há o envolvimento de professores que
aliciam alunas. “O professor também utiliza a posição para exercer poder
e sedução em sala de aula.”
Segundo Marlene, as pessoas mais envolvidas em casos de exploração
sexual são as que sofreram algum tipo de violência sexual na infância;
os pedófilos - que possuem um transtorno metal --; e os circunstanciais.
“Esse último grupo é o principal, são aqueles educados que o poder dele
está sobre minorias, em especial meninas e mulheres”, aponta. “Então
quando o cara tem sua autoestima abalada, ele cria uma pseudo autoestima
exercendo poder sobre o sexo e violência em prostíbulos e em casa, no
próprio lar”, analisa a socióloga.
A questão cultural também pesa, de acordo com Santos. “Há muitos mitos
sexuais ao redor da juventude brasileira que precisam ser revisados na
nossa cultura, como o fetiche da virgindade. Uma pessoa que tem
consciência de direitos e das consequências para as crianças e
adolescentes não busca conforto sexual nesse tipo de relação.” Segundo
os entrevistados, o comportamento de quem consome o sexo pode vir de uma
sociedade de consumo e que transforma a mulher em objeto, herança da
barbárie crônica medieval e coronelista ainda muito presente.