Sergio Torres e Fábio Motta, de O Estado de S. Paulo
COARI (AM) - A cidade em que peixes, frutas e legumes são
lavados no esgoto e expostos no chão é a que mais recebe royalties do
petróleo fora do Sudeste brasileiro. A amazonense Coari arrecadou R$
318,73 milhões desde 2005, pela exploração de óleo e gás em seu
território. De janeiro a novembro deste ano a prefeitura faturou R$
52,64 milhões, três vezes mais do que a capital Manaus (R$ 16,99
milhões). A falta de higiene no manuseio de alimentos é só um indicativo
de que, embora rico, o município enfrenta problemas sociais muito
graves, provocados por má gestão e desvio de verbas públicas. (veja mais detalhes no vídeo abaixo).
O hospital, a maioria das escolas, a estação de tratamento e o aterro
sanitário são prédios novos que, por falta de equipamentos e
profissionais, ou não funcionam ou prestam serviços de qualidade muito
ruim. Esse quadro equipara Coari aos índices sociais de outros
municípios do Amazonas. Só que a cidade é a sede da Província
Petrolífera de Urucu, reserva explorada pela Petrobrás que armazena
17,6% do gás natural produzido no País. Os royalties pagos a outros
municípios do Estado podem ser considerados irrisórios perto das
quantias recebidas por Coari nos últimos sete anos.
No ranking de 2011 da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e
Bicombustíveis (ANP) Coari aparece na 17.ª colocação, atrás apenas de
municípios do Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo, beneficiados
pela proximidade com as bacias petrolíferas de Campos e Santos. Embora
haja dinheiro - royalties de R$ 4,78 milhões por mês, em média, desde o
início do ano -, as benesses dessa riqueza não são percebidas no
cotidiano de Coari.
Episódios recentes evidenciam bem o problema. No início do mês, a
frota de 46 veículos a serviço da prefeitura foi apreendida
judicialmente por falta de pagamento à empresa que os alugou. Três
balsas lotadas de picapes, caminhões, micro-ônibus, motos e carros com a
logomarca da administração municipal partiram para Manaus. Das três
ambulâncias da frota, duas foram levadas. A que restou, antiga, não tem
condições de uso.
"Minha empresa quebrou. Os carros foram todos sucateados, 14 tiveram
que vir no reboque", protesta o empresário Giusepp Amore, dono da Amore
Rent a Car, na capital do Amazonas. Ele não revelou o valor da dívida
contraída pela prefeitura, estimada em cerca de R$ 2 milhões em Coari.
Diz apenas que o governo municipal não lhe pagou nove meses do contrato
de locação.
A Petrobrás fechou seu escritório no centro da cidade e deixou de
financiar projetos sociais, depois que os últimos prefeitos começaram a
ser investigados (um deles foi preso) sob a acusação de embolsar
recursos dos royalties. A companhia só mantém as atividades nos três
campos em Urucu - na selva, a 200 km de distância - e no restrito
terminal do Rio Solimões, de onde escoa a produção de óleo e gás, a 30
minutos em lancha rápida da sede de Coari.
Atraso
Os salários do funcionalismo chegaram a atrasar quatro meses. Neste
fim de ano o atraso caiu para um mês. Ninguém sabe direito quantos são
os empregados da prefeitura. O prefeito Arnaldo Mitouso alega que ao
assumir, em 2009, encontrou destruídos os computadores que armazenavam
dados do quadro funcional. Na cidade, falam que são 8 mil empregados,
mais de 10% da população de cerca de 76 mil pessoas. No primeiro
semestre, 3 mil terceirizados foram demitidos.
A indústria do petróleo, iniciada em 1988 com a produção do primeiro
poço em Urucu, atraiu a Coari milhares de pessoas, a grande maioria sem
qualificação profissional adequada para o setor. A população dobrou
desde 1991, de acordo com os censos do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE). Eram 38 mil habitantes há 20 anos.
Os novos moradores passaram a ser empregados em funções mal
remuneradas, como limpeza e trabalhos braçais em obras como o gasoduto
Urucu-Coari-Manaus, inaugurado há dois anos, e o terminal do Solimões.
Com o fim das construções e o afastamento da Petrobrás, aumentaram o
desemprego, o subemprego e a criminalidade.
O delegado Luiz Veiga Martins, chefe da Polícia Civil na cidade,
conta que o inchaço populacional fez crescer o número de assaltos e o
tráfico de drogas.
"Muitas empresas se retiraram e ficou muita gente sem ter o que
fazer. Ficou uma horda de gente, na verdade. Sinceramente, quando vim
para cá, há quatro meses, não esperava essa quantidade de problemas.
Pensava que era um município mais calmo, pois recebe muito mais dinheiro
do petróleo do que os outros", disse ele.
Por dia, são presas três pessoas envolvidas com drogas e registrados
20 boletins de ocorrências. A média de homicídios em Coari é de um por
semana. Além do titular, trabalham na delegacia oito investigadores e
dois escrivães. Na Polícia Militar, são 35, dos quais dois oficiais.
Doenças
As precárias condições de higiene refletem-se na propagação de
doenças entre os coarienses. Paulo David Braga, diretor do Hospital Dr.
Odair Carlos Geraldo, conta que as diarreias são a maior causa de
atendimento. O pescado é a dieta básica do habitante de Coari, mas a
conservação em ambiente refrigerado praticamente inexiste. A venda de
tucunarés, tambaquis, piranhas, pirarucus e matrinxãs ocorre na calçada
em áreas movimentadas do centro. Tomados por moscas, a temperaturas que
ao meio-dia chegam aos 40 graus centígrados, os peixes são,
periodicamente, molhados com água retirada dos valões, numa tentativa de
mantê-los apresentáveis.
Não há esgoto tratado na cidade. As valas com os dejetos da
população, após percorrer quilômetros de aglomerados urbanos, seguem
direto para o Lago Coari, junto ao Rio Solimões, que, 450 quilômetros
abaixo, forma o Rio Amazonas, após o encontro com o Negro. O encontro
das águas, logo depois de Manaus, é uma das mais conhecidas atrações
turísticas do Estado.
Em Coari, a taxa de analfabetismo da população com mais de dez anos
de idade, de 16,3%, supera em muito a do Amazonas, que é de 9,6%. Os
professores queixam-se da sobrecarga de trabalho, da baixa remuneração e
de atrasos no pagamento dos salários. As dez escolas da área urbana
aparentam bom estado, o que não é suficiente para manter o aluno. Embora
não haja dados oficiais, a evasão é calculada, por professores ouvidos
pelo Estado, em cerca de 60% dos estudantes do ensino médio.
Sem infraestrutura, cidade vive no caos
A primeira impressão ao desembarcar no improvisado cais, após dez
horas de viagem em barco desde Manaus, é de que em Coari o caos impera.
Carregadores disputam quase no braço a chance de abordar os
recém-chegados; embarcações circulam sem o mínimo ordenamento, o que
provoca inacreditáveis engarrafamento fluviais; motos passam em
velocidade em meio a pessoas e bagagens; charcos de esgoto formam-se no
caminho até a cidade; botos cinzentos e rosados nadam e pulam à espera
de comida jogada por meninos.
A impressão inicial torna-se certeza assim que o visitante se
desvencilha do tumulto portuário. Em Coari, o meio de locomoção mais
empregado é a motocicleta. São 15 mil, segundo cálculo pouco preciso da
prefeitura. Em cima delas, podem estar até quatro passageiros. Não há
respeito a pistas, faixas de trânsito e sinais luminosos. Os
mototaxistas (em número calculado de 3 mil) ocupam as calçadas à espera
de clientes. Os pedestres andam no asfalto, entre as motos e o esgoto
que corre nas sarjetas. Por mês, 65 feridos em acidentes são
hospitalizados na cidade. Os pacientes em pior estado vão para Manaus.
Surpreende também a quantidade de camelôs nas ruas. Vendem,
principalmente, DVDs piratas e peixes. Amontoados no chão, os peixes não
são pesados. A comercialização é por lotes. Dez piranhas presas em um
arame custam R$ 10. A imundície se estende também aos legumes, verduras e
frutas. Na rua em que é instalada todos os dias uma feira informal, no
centro, as melancias ficam em contato direto com o chão tomado por
excrementos.
A 450 km de Manaus pelo Rio Solimões, Coari fica em uma borda do lago
Coari. O nome tem origem indígena. A versão mais aceita é a de que vem
das palavras "Coaya Cory", que significam "rio do ouro". A cidade
cresceu quase junto à margem direita do Rio Solimões. Não há estradas
saindo de Coari. O rio é o acesso principal. De Manaus, lanchas que
viajam a 60 km/h, com capacidade para cem passageiros, fazem o trajeto
em até dez horas. As embarcações vagarosas, que levam até 300 pessoas,
amontoadas em redes, navegam no mínimo 20 horas entre a capital
amazonense e Coari.
A outra opção de acesso é aérea. Companhias
regionais percorrem as principais cidades do interior do Amazonas em
voos regulares. O aeroporto de Coari, em péssimo estado de conservação,
esteve fechado no início do segundo semestre, porque a Agência Nacional
de Aviação Civil (Anac) considerou inaceitáveis as condições da pista. O
aeroporto já foi reaberto.
A expansão populacional não foi acompanhada pela melhoria da
infraestrutura. Bairros surgiram do nada. Nessas ocupações não há
esgoto, água tratada, coleta de lixo e arruamento. A última invasão
ocorreu há 45 dias. A prefeitura devastou 12 hectares de selva amazônica
para fazer um loteamento e uma estrada entre os bairros Grande Vitória e
Pera. Castanheiras seculares, com 60 metros de altura, foram
derrubadas. Não houve o obrigatório relatório de impacto ambiental antes
da devastação. O Ministério Público do Estado abriu ação civil para
apurar o crime ambiental.
A questão do lixo também é dramática em Coari. Inaugurado há quatro
anos, o aterro sanitário municipal jamais funcionou. Os detritos são
despejados em uma lixeira a céu aberto. Os rejeitos hospitalares vão
para o lixão: seringas, gaze e materiais sujos de sangue. Como a coleta
urbana é reduzida, toneladas de lixo acumulam-se sob as palafitas
construídas nos igarapés (cursos d’água) que cortam a cidade.
Em uma delas, no igarapé Espírito Santo, mora a desempregada Jacilane
Marciano Lima. Com 18 anos, é mãe de duas crianças. No casebre de
madeira sem banheiro que divide com nove parentes, ela relata ter
trabalhado dois meses para a prefeitura, antes de ser despedida. "Não me
pagaram nem um salário", lamentou ela, queixando-se também dos
mosquitos e dos ladrões.