Trecho do livro: Diário de um Mago - Paulo Coelho
Estávamos num campo imenso, um campo de trigo liso e monótono, que se estendia por todo o horizonte. A única coisa quebrando o tédio da paisagem era uma coluna medieval encimada por uma cruz, que marcava o caminho dos peregrinos. Chegando em frente à coluna, Petrus largou a mochila no chão e se ajoelhou. Pediu que eu fizesse o mesmo.
Vamos rezar. Vamos rezar pela única coisa que derrota um peregrino quando ele encontra a sua espada:
os seus vícios pessoais. Por mais que ele aprenda com os Grandes Mestres como manejar a lâmina, uma de suas mãos será sempre seu pior inimigo. Vamos rezar para que, caso você consiga encontrar a sua espada, segure-a sempre com a mão que não te escandaliza.
Eram duas horas da tarde. Não se ouvia nenhum ruído, e Petrus começou:
Tende piedade, Senhor, porque somos peregrinos a caminho de Compostela, e isto pode ser um vício. Fazei em vossa infinita piedade com que jamais consigamos virar o conhecimento contra nós mesmos.
Tende piedade dos que têm piedade de si mesmos, e se acham bons e injustiçados pela vida, porque não mereciam as coisas que lhe aconteceram - pois estes jamais vão conseguir combater o Bom Combate. E tende piedade dos que são cruéis consigo mesmos, e só vêem maldade nos próprios atos, e se consideram culpados pelas injustiças do mundo. Porque estes não conhecem Tua lei que diz: "até os fios de tua cabeça estão contados".
Tende piedade dos que mandam e dos que servem muitas horas de trabalho, e se sacrificam a troco de um domingo onde está tudo fechado e não existe lugar onde ir. Mas tende piedade dos que santificam sua obra e vão além dos limites de sua própria loucura, e terminam endividados ou pregados na cruz por seus próprios irmãos. Porque estes não conheceram Tua lei que diz:
"sede prudente como as serpentes e simples como as pombas".
Tende piedade porque o homem pode vencer o mundo e nunca travar o Bom Combate consigo mesmo. Mas tende piedade dos que venceram o Bom Combate consigo mesmo, e agora estão pelas esquinas e bares da vida, porque não conseguiram vencer o mundo. Porque estes não conheceram Tua lei que diz: "quem observa minhas palavras tem que edificar sua casa na rocha".
Tende piedade dos que têm medo de segurar na pena, no pincel, no instrumento, na ferramenta, porque acham que alguém já fez melhor que eles, e não se sentem dignos de entrar na mansão portentosa da Arte. Mas tende mais piedade dos que seguraram na pena, no pincel, no instrumento e na ferramenta, e transformaram a Inspiração numa forma mesquinha de se sentirem melhores do que os outros. Estes não conheceram Tua lei que diz: "nada está oculto senão para ser manifesto, e nada se faz escondido senão para ser revelado".
Tende piedade dos que comem, e bebem, e se fariam, mas são infelizes e solitários em sua fartura. Mas tende mais piedade dos que jejuam, censuram, proíbem e se sentem santos, e vão pregar Teu nome pelas praças. Porque estes não conhecem Tua lei que diz: "se eu testifico a respeito de mim mesmo, meu testemunho não é verdadeiro".
Tende piedade dos que temem a Morte e desconhecem os muitos remos que caminharam e as muitas mortes que já morreram, e são infelizes porque pensam que tudo vai acabar um dia. Mas tende mais piedade dos que já conheceram suas muitas mortes, e hoje se julgam imortais, porque desconhecem Tua lei que diz:
"quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus".
Tende piedade dos que se escravizam pelo laço de seda do Amor, e se julgam donos de alguém, e sentem ciúmes, e se matam com veneno, e se torturam porque não conseguem ver que o Amor muda como o vento e como todas as coisas. Mas tende mais piedade dos que morrem de medo de amar, e rejeitam o amor em nome de um Amor Maior que eles não conhecem, porque não conhecem Tua lei que diz: "quem beber desta água, nunca mais tornará a ter sede".
Tende piedade dos que reduzem o Cosmos a uma explicação, Deus a uma poção mágica, e o homem a um ser com necessidades básicas que precisam ser satisfeitas, porque estes nunca vão ouvir a música das esferas. Mas tende mais piedade dos que possuem a fé cega, e nos laboratórios transformam mercúrio em ouro, e estão cercados de livros sobre os segredos do Tarot e o poder das pirâmides. Porque estes não conhecem Tua lei que diz: "é das crianças o reino dos céus".
Tende piedade dos que não vêem ninguém além de si mesmos, e para quem os outros são um cenário difuso e distante quando passam pela rua em suas limusines, e se trancam em escritórios refrigerados no último andar, e sofrem em silêncio a solidão do poder. Mas tende piedade dos que abriram mão de tudo, e são caridosos, e procuram vencer o mal apenas com amor, porque estes desconhecem Tua lei que diz: "quem não tem espada, que venda sua capa e compre uma".
Tende piedade, Senhor, de nós que buscamos e ousamos empunhar a espada que prometestes, e que somos um povo santo e pecador, espalhado pela terra. Porque não reconhecemos a nós mesmos, e muitas vezes pensamos que estamos vestidos e estamos nus, pensamos que cometemos um crime e na verdade salvamos alguém. Não vos esqueceis em vossa piedade de todos nós que empunhamos a espada com a mão de um anjo e a mão de um demônio segurando no mesmo punho. Porque estamos no mundo, continuamos no mundo e precisamos de Ti. Precisamos sempre de Tua lei que diz: "quando vos mandei sem bolsa, sem alforjes e sem sandálias, nada vos faltou".
Petrus parou de rezar. O silêncio continuava. Ele estava olhando fixo o campo de trigo a nossa volta.
Estávamos num campo imenso, um campo de trigo liso e monótono, que se estendia por todo o horizonte. A única coisa quebrando o tédio da paisagem era uma coluna medieval encimada por uma cruz, que marcava o caminho dos peregrinos. Chegando em frente à coluna, Petrus largou a mochila no chão e se ajoelhou. Pediu que eu fizesse o mesmo.
Vamos rezar. Vamos rezar pela única coisa que derrota um peregrino quando ele encontra a sua espada:
os seus vícios pessoais. Por mais que ele aprenda com os Grandes Mestres como manejar a lâmina, uma de suas mãos será sempre seu pior inimigo. Vamos rezar para que, caso você consiga encontrar a sua espada, segure-a sempre com a mão que não te escandaliza.
Eram duas horas da tarde. Não se ouvia nenhum ruído, e Petrus começou:
Tende piedade, Senhor, porque somos peregrinos a caminho de Compostela, e isto pode ser um vício. Fazei em vossa infinita piedade com que jamais consigamos virar o conhecimento contra nós mesmos.
Tende piedade dos que têm piedade de si mesmos, e se acham bons e injustiçados pela vida, porque não mereciam as coisas que lhe aconteceram - pois estes jamais vão conseguir combater o Bom Combate. E tende piedade dos que são cruéis consigo mesmos, e só vêem maldade nos próprios atos, e se consideram culpados pelas injustiças do mundo. Porque estes não conhecem Tua lei que diz: "até os fios de tua cabeça estão contados".
Tende piedade dos que mandam e dos que servem muitas horas de trabalho, e se sacrificam a troco de um domingo onde está tudo fechado e não existe lugar onde ir. Mas tende piedade dos que santificam sua obra e vão além dos limites de sua própria loucura, e terminam endividados ou pregados na cruz por seus próprios irmãos. Porque estes não conheceram Tua lei que diz:
"sede prudente como as serpentes e simples como as pombas".
Tende piedade porque o homem pode vencer o mundo e nunca travar o Bom Combate consigo mesmo. Mas tende piedade dos que venceram o Bom Combate consigo mesmo, e agora estão pelas esquinas e bares da vida, porque não conseguiram vencer o mundo. Porque estes não conheceram Tua lei que diz: "quem observa minhas palavras tem que edificar sua casa na rocha".
Tende piedade dos que têm medo de segurar na pena, no pincel, no instrumento, na ferramenta, porque acham que alguém já fez melhor que eles, e não se sentem dignos de entrar na mansão portentosa da Arte. Mas tende mais piedade dos que seguraram na pena, no pincel, no instrumento e na ferramenta, e transformaram a Inspiração numa forma mesquinha de se sentirem melhores do que os outros. Estes não conheceram Tua lei que diz: "nada está oculto senão para ser manifesto, e nada se faz escondido senão para ser revelado".
Tende piedade dos que comem, e bebem, e se fariam, mas são infelizes e solitários em sua fartura. Mas tende mais piedade dos que jejuam, censuram, proíbem e se sentem santos, e vão pregar Teu nome pelas praças. Porque estes não conhecem Tua lei que diz: "se eu testifico a respeito de mim mesmo, meu testemunho não é verdadeiro".
Tende piedade dos que temem a Morte e desconhecem os muitos remos que caminharam e as muitas mortes que já morreram, e são infelizes porque pensam que tudo vai acabar um dia. Mas tende mais piedade dos que já conheceram suas muitas mortes, e hoje se julgam imortais, porque desconhecem Tua lei que diz:
"quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus".
Tende piedade dos que se escravizam pelo laço de seda do Amor, e se julgam donos de alguém, e sentem ciúmes, e se matam com veneno, e se torturam porque não conseguem ver que o Amor muda como o vento e como todas as coisas. Mas tende mais piedade dos que morrem de medo de amar, e rejeitam o amor em nome de um Amor Maior que eles não conhecem, porque não conhecem Tua lei que diz: "quem beber desta água, nunca mais tornará a ter sede".
Tende piedade dos que reduzem o Cosmos a uma explicação, Deus a uma poção mágica, e o homem a um ser com necessidades básicas que precisam ser satisfeitas, porque estes nunca vão ouvir a música das esferas. Mas tende mais piedade dos que possuem a fé cega, e nos laboratórios transformam mercúrio em ouro, e estão cercados de livros sobre os segredos do Tarot e o poder das pirâmides. Porque estes não conhecem Tua lei que diz: "é das crianças o reino dos céus".
Tende piedade dos que não vêem ninguém além de si mesmos, e para quem os outros são um cenário difuso e distante quando passam pela rua em suas limusines, e se trancam em escritórios refrigerados no último andar, e sofrem em silêncio a solidão do poder. Mas tende piedade dos que abriram mão de tudo, e são caridosos, e procuram vencer o mal apenas com amor, porque estes desconhecem Tua lei que diz: "quem não tem espada, que venda sua capa e compre uma".
Tende piedade, Senhor, de nós que buscamos e ousamos empunhar a espada que prometestes, e que somos um povo santo e pecador, espalhado pela terra. Porque não reconhecemos a nós mesmos, e muitas vezes pensamos que estamos vestidos e estamos nus, pensamos que cometemos um crime e na verdade salvamos alguém. Não vos esqueceis em vossa piedade de todos nós que empunhamos a espada com a mão de um anjo e a mão de um demônio segurando no mesmo punho. Porque estamos no mundo, continuamos no mundo e precisamos de Ti. Precisamos sempre de Tua lei que diz: "quando vos mandei sem bolsa, sem alforjes e sem sandálias, nada vos faltou".
Petrus parou de rezar. O silêncio continuava. Ele estava olhando fixo o campo de trigo a nossa volta.
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