É na história bíblica de José, o personagem que foi vendido pelos
próprios irmãos para ser escravo no Egito, que Joel de Souza Rocha, de
42 anos, natural de Coari, no interior do Amazonas, busca inspiração. “A
gente sabe o tamanho da força que tem quando temos de lutar dentro de
nossa própria casa”, diz.
Há quase vinte dias, Joel, solteiro e pai de uma menina, emprestou
dinheiro de quatro amigos da cidade de 77 mil habitantes para, escondido
da família, viajar sozinho para Brasília.
Até hoje está acampado em um canteiro à frente da sede do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE): “Eu vim para dar voz a Coari”, explica.
Com apenas R$ 120 no bolso, Joel ganhou hospedagem de graça da dona
de uma pensão para sua estadia em Brasília. Porém, o coariense, que fez
uma única refeição desde o dia em que chegou – não pelo parco dinheiro
mas por protesto – ficou mesmo acampado, munido de uma faixa e alguns
CDs.
A faixa traz um pedido que não está à margem da lei: “Por favor, TSE.
Faça valer a lei da Ficha Limpa na minha cidade. Coari/Amazonas”.
Já os CDs contêm dados sobre o personagem que levou o coariense a dormir na rua, passar frio e fome: Adail Pinheiro.
Dossiê ‘Vorax’
São cópias de documentos e reportagens contendo gravações que a
Polícia Federal fez durante a “Operação Vorax”, realizada entre 2004 e
2008, que desarticulou um esquema de corrupção, fraudes em licitações e
falsificação de documentos que envolviam, entre 28 acusados, o prefeito
recém-eleito de Coari, Adail Pinheiro (PRP). Pela acusação, Adail – que
já administrou a cidade entre 2001 e 2008 – chegou a ter prisão
preventiva decretada em 2009 – ele não havia informado à Justiça sua
mudança de Coari para Manaus.
Após ser preso e recorrer a todas as instâncias possíveis – Tribunal
de Justiça do Amazonas (TJAM) e Superior Tribunal de Justiça (STJ) –,
Adail acabou ganhando a liberdade pelas mãos do ministro Gilmar Mendes,
do Supremo Tribunal Federal (STF), em 28 de dezembro de 2009.
Acusado de abuso de poder econômico e desvio de dinheiro público,
entre outros crimes, o então ex-prefeito de Coari permaneceu menos de
três meses preso. Antes da prisão, a prestação de contas da sua
administração foi rejeitada pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
O material que Joel Rocha reúne também conta com as gravações que
apontam envolvimento de Adail e dois ex-secretários municipais – Adriano
Salan e Maria Lândia dos Santos – em facilitação à prostituição de
menores, abuso sexual e pedofilia. Nas reportagens, algumas delas
exibidas em rede nacional, é possível ouvi-los negociar, com uso de
‘códigos’, a prostituição de meninas de 15, 14 e até 13 anos de idade.
Adail e os dois servidores chegaram a prestar depoimento à CPI da
Pedofilia do Senado, onde negaram as acusações.
Mas o que quer o coariense Joel? Apresentar o material ao José Antonio Dias Toffoli, do TSE, relator de um recurso especial (
veja aqui)
do Ministério Público Eleitoral do Amazonas (MPE) contra Adail
Pinheiro. O MPE tenta reverter do tribunal regional eleitoral que
liberou o prefeito a concorrer – e vencer – as eleições deste ano.
“Não é possível que ele, depois de ter sido condenado, depois de
haver provas de corrupção na cidade de Coari, que ele possa concorrer
nas eleições. Ele não é ficha limpa”, afirma Joel.
Ficha suja
O imbróglio envolvendo o nome de Adail Pinheiro nas eleições deste
ano começou pouco depois do registro de sua candidatura, que foi
deferido pela Justiça Eleitoral em Coari.
O MPE recorreu da candidatura com base na Lei da Ficha Limpa, citando
duas condenações do ex-prefeito no Tribunal de Contas estadual
(TCE-AM), duas no Tribunal de Contas da União (TCU), e outra pelo
Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas (TRE-AM) – nesta, Adail foi
tornado inelegível por três anos.
O TCE julgou irregulares as contas municipais de 2002 e 2006. No
primeiro caso, Adail foi condenado a devolver aos cofres R$ 1,2 milhões e
pagar multa R$ 32.267,08; no segundo, a sanção foi de R$ 9 milhões,
entre multas e ressarcimento de dinheiro público.
No TCU, Adail foi condenado por
irregularidades na aplicação de recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) e por “
malversação do dinheiro público” em convênio com o Ministério do Meio Ambiente.
A condenação na Justiça Eleitoral ocorreu por abuso de poder político e econômico nas eleições de 2000.
Mas a juíza da 8ª Zona Eleitoral de Coari, Sabrina Ferreira – a mesma
que aprovou a candidatura – negou o recurso de impugnação proposto pelo
MPE. Ela alegou que ambas as condenações no TCE estavam suspensas por
ordem judicial e que as condenações pelo TCU não comprovavam “ato doloso
de improbidade administrativa”.
A juíza também descartou a condenação pela Justiça Eleitoral do
Amazonas, em 2009, como impeditivo uma vez que, de acordo com a juíza,
os fatos irregulares ocorreram antes da redação da Lei nº 135/2010, a
lei da Ficha Limpa. Além disso, sustenta a magistrada, Adail já cumpriu
os três anos de inegibilidade determinados pelo julgamento do TRE,
contando a partir de 2008.
Reviravoltas
Após o indeferimento do recurso de impugnação, o MPE voltou a
recorrer da candidatura, desta vez ao Tribunal Regional Eleitoral do
Amazonas. Em julgamento no dia 20 de junho, o pedido foi rejeitado.
Na primeira etapa, o relator do caso, o juiz Marco Antônio Costa,
usou a mesma argumentação da juíza Sabrina Ferreira, da comarca de
Coari: não haveria “ato doloso” nas irregularidades detectadas e
julgadas pelo TCU. Para torná-lo inelegível este ano, diz o magistrado,
“a condenação deveria ser, por exemplo, uma ação civil pública”.
Com todos os votos a seu favor, no dia seguinte, Adail estava livre
para concorrer ao pleito. Mas o seu então candidato a vice, José
Henrique de Oliveira, teve a candidatura impugnada por ter sido cassado
do mandato de vereador e declarado inelegível pelo TRE-AM, no dia 9 de
julho de 2009.
Em maio de 2008, ele e outros políticos – incluindo Adail –
participaram de uma ação chamada “Comemoração do Dia das Mães” em que R$
4 milhões do dinheiro público foram distribuídos à população em forma
de brindes. O valor e os preparativos da ação foram interceptadas em
gravações durante a “Operação Vorax”.
Ao longo do período entre a candidatura e a briga do MPE para
impugná-lo, Adail obteve vitórias e derrotas. No começo de junho, o TCE
acatou recurso contra a condenação das contas de 2002, em que o
ex-prefeito alegava não ter tido direito à ampla defesa por não ter sido
notificado. Já no mês de julho, Adail obteve liminar do presidente do
TRE, o desembargador Flávio Pascarelli, que suspendeu a reprovação das
contas de 2006. Em agosto, porém, a liminar foi cassada pelo Tribunal de
Justiça do Amazonas.
No fim de julho, outra vitória: o (então) ex-prefeito conseguiu
anular uma decisão de 2009 a respeito de irregularidades na aplicação de
recursos do SUS. Mas, em outubro, o Supremo Tribunal Federal (STF),
indeferiu um pedido de suspensão da outra condenação do TCU, também de 2009, por verbas do MMA.
Mas o Ministério Público do Amazonas não se deu por satisfeito, e
ajuizou recurso especial solicitando encaminhamento do seu pedido de
impugnação da candidatura ao TSE, em Brasília.
Enquanto isso, Adail Pinheiro, que teve apoio declarado do senador
Eduardo Braga (PMDB), líder do Governo Federal no Senado, e do
governador do Amazonas, Omar Aziz (PSD), venceu o pleito com 42,83% dos
votos válidos, quinze pontos à frente do segundo lugar.
Riqueza, miséria
De volta à frente do TSE, Joel se preocupa com a sua Coari. “Há
quatro bairros que estão sem água, energia e asfalto há doze anos”. O
Bairro do Pêra, diz ele, está isolado da cidade pela falta de uma ponte
que vem sendo prometida pelo grupo de Adail há doze anos.
Para provar, o coariense mostra um exemplar de um jornal de tiragem e edição únicas – “O Progresso”, de outubro de 2004.
O jornal trazia cópias de 21 contratos de obras assinados por Adail
em sua primeira gestão, bem como as fotos dos locais feitas após o prazo
de vigência dos contratos. Nada tinha sido feito. Entre eles, a obra da
orla da cidade, jamais concluída. O jornal acabou não circulando pela
cidade.
“No dia em que os jornais chegaram em Coari, pessoas ligadas a Adail
já sabiam e conseguiram pegá-los. Tudo foi queimado, menos um único
exemplar, retirado da pilha por um curioso”, diz Joel, mostrando,
orgulhoso, o único exemplar que escapou.
O mesmo grupo se reveza no poder há anos, explica Joel. “E há anos
que a população de Coari sofre com problemas do século passado. Imagine
que até hoje há pessoas que vivem na base da lamparina e andam no barro,
pois não há asfalto”.
“Eu fui a diversos bairros, visitei pessoas. Vi mães de família
dizendo que não tinham o que comer, e que suas crianças choraram de
fome”.
Nesse momento, Joel para de falar e coloca os óculos escuros,
envergonhado das lágrimas que escorrem. Mas o arrastado da voz não se
esconde. “Queria que ele deitasse nesse banco que deitei por uma noite, e
ficassem sem comer por uma noite. Pensaria diferente”.
Coari, lembra Joel, é uma cidade rica. Apenas no ano passado, recebeu
R$ 58 milhões da Petrobras referentes aos royalties do petróleo. Nos
primeiros mandatos de Adail foi prefeito, entre 2001 e 2008, o município
recebeu 303 milhões de royalties. Coari sustenta o título de segundo
município com maior arrecadação do Amazonas, perdendo apenas para a
capital, Manaus.
“Minha cidade é a mais rica da região Norte do Brasil e tem tudo para
ser uma das mais ricas do país”. Mesmo assim, nos últimos doze anos,
segundo ele, foram erguidas apenas 100 moradias para a população.
Resta saber se a riqueza de Coari será convertida em crescimento
social e econômico, fato que poderá ser averiguado pelo próximo cálculo
do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos municípios, que será
divulgado no início do ano que vem pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD).
O último relatório, divulgado em 2003 com dados do Censo 2000,
colocou a cidade de Coari na posição 4.178, com IDH de renda em 0,507 – o
que deixou a cidade na faixa de médio desenvolvimento humano, porém
muito próximo do limite mínimo: 0,500.
O que também se manteve baixo no período de 2001 a 2008 foi o
patrimônio de Adail Pinheiro, pelo menos de acordo com dados fornecidos
pelo próprio candidato à Justiça Eleitoral. Mesmo depois de oito anos no
poder, seja por mandatos em seu nome ou de seu grupo político, Adail
declarou possuir apenas três veículos que juntos somam R$ 84 mil.
Uma casa em Coari que ocupa todo um quarteirão e que foi usada por
Adail durante boa parte de seus mandatos, assim como um apartamento em
Manaus (onde chegou a ser preso, em 2009), no conjunto Eldorado (zona
Centro-sul da cidade) não foram declarados como de seu patrimônio
pessoal.
‘Vagabundo’
Apesar da fatura de material e da insistência em ficar no meio da
rua, Joel Rocha ainda não conseguiu passar da recepção do TSE, em quase
20 dias de Brasília. Ele tentou, já no primeiro dia de acampamento, ser
recebido pelo ministro Dias Toffoli. Mas ouviu que seria necessário
acionar um advogado para tentar marcar uma audiência.
Agora, Joel Rocha promete tentar, inclusive, ser recebido pela
presidente do Tribunal, a ministra Carmen Lúcia. “Espero que a ministra
Carmen Lúcia, pelo menos, me receba e me ouça”, lamenta.
Enquanto não é recebido pelas autoridades, Joel permanece acampado no
canteiro à frente do TSE. Agora, diferente do primeiro dia, já tem uma
rede pendurada entre algumas árvores, em uma cena muito comum nas
cidades e comunidades do interior da região Norte. A rede foi cedida por
uma senhora que vende lanches nas proximidades. Ele também improvisa,
com uma lona plástica, a proteção contra a chuva, que começa a voltar
neste período, em Brasília.
A sua maior preocupação, no momento, é a integridade da família. “As
pessoas já comentam. Já apontam minha família na rua”, ele diz,
garantindo que não arreda pé de lá. “Fico aqui até o julgamento do
recurso”.
A ministra Carmen Lúcia prometeu, pouco depois das eleições do
primeiro turno, que todos os processos referentes à Lei da Ficha Limpa
serão julgados antes da diplomação dos eleitos em todo o país, em de
dezembro.E se houver uma decisão favorável a Adail Pinheiro? Joel mira o
vasto horizonte de Brasília: “Não sei o que fazer. Sei que não poderei
voltar à Coari”.
Vorax: A Justiça do Amazonas também entrou na mira
A “Operação Vorax”, da Polícia Federal, não flagrou apenas servidores
públicos da prefeitura de Coari e pessoas ligadas a Adail Pinheiro.
Escutas da polícia, levadas à Justiça, também apontam indícios de
corrupção no próprio Poder Judiciário do Amazonas.
Pelo menos cinco juízes e um desembargador estariam envolvidos na
manipulação de decisões judiciais em favor do grupo político de Adail
Pinheiro.
Todos os citados nas escutas da PF – o desembargador Domingos Jorge
Chalub Pereira e os juízes Hugo Fernandes Levy Filho, Rômulo José
Fernandes da Silva, Ana Paula Medeiros Braga, Elci Simões de Oliveira e
Airton Luís Corrêa Gentil – foram submetidos a processo administrativo
disciplinar pelo Conselho Nacional de Justiça, no mês passado. O
procurador-geral da República, Roberto Gurgel, pediu a aposentadoria
compulsória para Chalub, Levy Filho, Fernandes da Sailva e Ana Paula
Braga.
No final, a juíza Ana Paula Braga, acusada de troca de favores com a
prefeitura de Coari, acabou não sendo punida com aposentadoria
compulsória – punição considerada mais grave – mas acabou “apenas”
transferida de Coari. A magistrada teria sido beneficiada por Adail com
passagens aéreas e vagas gratuitas em camarotes de shows e eventos
culturais realizados na cidade. Seu novo destino ainda será definido
pelo Tribunal de Justiça do Amazonas.